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Economia

Ex-sócio da Vale na Guiné, magnata israelense acusa mineradora de omitir que sabia de corrupção no país

Em disputa bilionária na Justiça, empresa apresenta áudio em que ex-diretor, sem saber que era gravado, cita motivação política
Mina de Simandou, na Guiné, considerada a Carajás africana, é uma das maiores do mundo Foto: Divulgação
Mina de Simandou, na Guiné, considerada a Carajás africana, é uma das maiores do mundo Foto: Divulgação

SÃO PAULO – A bilionária disputa entre a Vale e o magnata israelense Beny Steinmetz – seu ex-sócio em uma importante mina de minério de ferro na Guiné – deve ganhar um novo capítulo com gravações de conversas de ex-executivos da mineradora brasileira que afirmam que a Vale sabia que havia suspeita de corrupção quando entrou no negócio.

O GLOBO teve acesso aos áudios e vídeos das gravações, feitas pela empresa de investigação israelense Black Cube, contratada por Steinmetz. Os executivos que aparecem nas gravações não sabiam que estavam conversando com um investigador disfarçado ou mesmo que estivessem sendo gravados.

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Todo o material foi apresentado nesta quinta-feira à Justiça de Nova York, onde Steinmetz quer reverter a multa que deve à Vale no projeto da mina de Simandou, considerada a Carajás africana.

As gravações revelam os bastidores da polêmica negociação pela mina de Simandou, e que tinha como pano de fundo o interesse do governo Lula em estreitar laços diplomáticos e econômicos com a África — fato que é mencionado nas conversas.

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Em um dos áudios, o ex-diretor de minério de ferro da Vale, José Carlos Martins, defensor do negócio à época, afirma que o Conselho de Administração da Vale “tinha conhecimento de tudo”, mas concordou em correr o risco dada a importância estratégica da mina de Simandou, uma das maiores do mundo.

– Ele (Beny Steinmetz) não conseguiu essa licença por causa de seus olhos azuis – diz Martins em uma das conversas que teve com o agente disfarçado da Black Cube.

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Steinmetz já foi alvo de investigação por corrupção e lavagem de dinheiro na Suíça, em Israel, nos Estados Unidos e na própria Guiné. Ele chegou a ser preso provisoriamente e nega as acusações.

A assessoria do ex-presidente Lula não quis comentar. Martins também foi procurado e não quis dar declarações. A Vale se manifestou apenas após a publicação da matéria, afirmando que "Steinmetz busca eximir-se de sua responsabilidade pessoal pelos prejuízos causados à Vale, alegando que a Vale 'sabia' que ele era corrupto.  A Vale está confiante de que os esforços empreendidos por Steinmetz continuarão a ser rejeitados por qualquer corte ou tribunal, tendo em conta o registro completo dos extensos esforços de diligência da Vale e os artifícios extraordinários utilizados por Steinmetz para ocultar da Vale a sua fraude".

Consultoria

As conversas gravadas a mando de Steinmetz aconteceram entre fevereiro e a semana passada. As primeiras foram realizadas em lugares públicos, como em um café em Nova York. Com o avanço da pandemia do novo coronavírus, elas passaram a ser feitas por videoconferência.

Para conquistar a confiança dos entrevistados, os agentes acenaram com a possibilidade de uma consultoria ou um convite para um assento em conselho de uma empresa estrangeira.

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Ao longo de três conversas em inglês com um investigador da Black Cube que se apresentou como investidor em uma projeto de mineração no Peru, Martins relatou uma reunião de Conselho da Vale – que tem entre seus conselheiros representantes de fundos de pensão de estatais e do BNDES – onde, segundo ele, as suspeitas de corrupção envolvendo Steinmetz foram tratadas de maneira informal, sem registro em ata.

Ele diz ter recomendado a assinatura do acordo “de nariz fechado pois cheira mal”, para “não deixar o negócio cair nas mãos dos competidores”.

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– Nós falamos para eles (conselheiros): Olha, tem algo de errado’. O CEO (então presidente da Vale, Roger Agnelli, morto em 2016) disse as mesmas coisas. E no final, o conselho falou: Ok, vamos nessa. Não digam mais nada. Vamos fechar – relata Martins, que continua a conversa fazendo uma analogia a um encontro sexual:

– Você pega uma garota e leva para o seu quarto, ela está nua, maravilhosa, mas aí ela fala: Tem um probleminha. Tenho AIDS, ok? É um problema.

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Condenação

Magnata israelense Beny Steinmetz acusa Vale de omitir conhecimento sobre corrupção na Guiné Foto: Arquivo
Magnata israelense Beny Steinmetz acusa Vale de omitir conhecimento sobre corrupção na Guiné Foto: Arquivo

No ano passado, Steinmetz foi condenado na Corte Internacional de Arbitragem de Londres a pagar uma indenização de US$ 2 bilhões (incluindo juros e custas judiciais) à Vale. A corte arbitral britânica acolheu os argumentos da Vale de que ela teria sido enganada por Steinmetz e acreditado que a concessão da mina fora obtida de forma lícita.

A mineradora conseguiu o bloqueio de alguns ativos de Steinmetz – incluindo um iate e dois jatinhos particulares – e de outros executivos de sua empresa em Londres e Nova York.

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Martins diz ainda que o projeto tinha o “apoio” do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que defendia uma aproximação com a África. Ainda segundo Martins afirmou na conversa gravada, “todos os caras do conselho que eram representantes do governo apoiavam ele (Lula)”.

Martins viajou a Nova York a convite e se encontrou com o investigador da Black Cube nos dias 12 e 13 de fevereiro. A terceira conversa aconteceu por Skype no dia 30 de março. Em uma das conversas ele contou ter entregue cópias de seus e-mails do período para uma investigação interna conduzida pela Vale.

De acordo com a petição apresentada ontem em Nova York, Steinmetz pleiteia acesso a esses e-mails. Sua intenção é usá-los como prova de que a Vale sabia das suspeitas de corrupção e com isso tentar reverter a condenação na câmara de arbitragem de Londres.

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Oposição

A joint venture com Steinmetz para explorar a mina de Simandou foi assinada em 30 de abril de 2010. Mas, apesar do apoio do conselho, nem todos na diretoria-executiva apoiaram a decisão. Fabio Barbosa, então vice-presidente financeiro da companhia, morto em 2015, se recusou a assinar o negócio, que contou com a assinatura de Agnelli e Martins.

Segundo relato do ex-gerente executivo de fusões e aquisições da Vale Alex Monteiro, a recomendação de Barbosa, seu chefe na época, era para criar uma conta escrow (conta-caução) e “não pagar um centavo” para o sócio israelense até o novo governo assumir e a licença ser ratificada pelo parlamento.

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Monteiro conversou por Skype com um agente da Black Cube, que se apresentou como um assessor financeiro independente, no dia 30 de março.

Procurado, Monteiro afirmou ao GLOBO que a discussão sobre a conta escrow estava ligada exclusivamente à instabilidade política na Guiné e “nunca a alguma suspeita de ilícito”.

O contrato foi assinado depois que os gestores da BSGR, empresa de Steinmetz, concordaram em formalizar, com declarações e garantias pessoais, a inexistência de ilegalidade na obtenção da licença de Simandou.

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A Black Cube conversou ainda com Denis Thirouin, um consultor francês que trabalhou para a Vale na África entre 2005 e 2010. Foram duas ligações, por Whatsapp e telefone, nos dias 3 e 14 de maio. Perguntado pelo agente da Black Cube se a Vale tinha conhecimento de como a licença havia sido obtida Thirouin responde: “sim, sem dúvida”.

As gravações poderão ter que passar por perícia caso isso seja solicitado pela Vale e o pedido acolhido pela Justiça americana.

Histórico conturbado

A Vale pagou US$ 500 milhões por 51% da joint venture com a BSGR, a empresa de Steinmetz. Pelo contrato, a Vale se comprometeu ainda a fazer investimentos de US$ 2 bilhões para uma estrada de ferro para escoar a produção, dos quais US$ 700 milhões chegaram a ser desembolsados.

O negócio era para ser a joia da coroa de Agnelli, que em dez anos à frente da Vale fez o lucro da companhia saltar de R$ 3 bilhões para R$ 30 bilhões. Mas além das suspeitas de corrupção, o momento para fechar um contrato não podia ser pior.

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Em 2010, a Guiné vivia um conturbado processo eleitoral após um golpe de Estado deflagrado no vácuo da morte do ditador Lansana Conté, em dezembro de 2008, e que comandou o país por 24 anos. O candidato que sairia vencedor, Alpha Condé, ainda hoje no poder, tinha como bandeira eleitoral rever os contratos da mina de Simandou.

Mas Agnelli tinha pressa e as negociações com Steinmetz duraram dois meses.

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– O CEO da Vale estava muito interessado em adquirir os ativos e tinha muito medo que os chineses colocassem as mãos naquelas reservas – conforme relato de Monteiro ao agente da Black Cube.

Quando Alpha Condé foi eleito, Steinmetz perdeu acesso ao círculo de poder na Guiné. Agnelli resolveu então apelar a Lula. Em fevereiro de 2011, Lula, já como ex-presidente, foi a Conakry participar de um jantar com Agnelli e o novo líder do país africano, além das respectivas esposas.

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Mas não adiantou. Segundo relato de Martins, Condé começou a fazer exigências contratuais, como mudanças no trajeto da ferrovia, que inviabilizaram o negócio.

– Esse era o problema com a África. Você faz acordo com um cara e o próximo também quer dinheiro – diz Martins em uma das conversas o agente da Black Cube.

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Ainda segundo Martins, nas conversas gravadas, o investidor bilionário George Soros também tentou interferir, mas a favor do novo governo da Guiné, pedindo para que a Vale fizesse investimentos para ajudar a desenvolver o país.

– Eu não cheguei em acordo nem com o Soros nem com o intermediário (representante do governo que teria pedido propina) –, disse Martins na conversa gravada.

A reportagem não conseguiu entrar em contato com George Soros.

– E o novo presidente da Vale (Murilo Ferreira, que assumiu em maio de 2011) não queria mais investir no país. E então começamos o processo de saída – continuou Martins.

A licença da mina acabou sendo cassada em 2014 e, desde então a Vale vem tentando ser ressarcida pelo antigo sócio.

Em mãos chinesas

Steinmetz pagou US$ 160 milhões pela licença de exploração de Simandou em 2008, ainda no governo de Lansana Conté, que cassou uma parte dos direitos de outra mineradora, a Rio Tinto, alegando que a empresa estava demorando para fazer investimentos e iniciar a extração do minério.

Há alguns anos, a própria Rio Tinto foi investigada pelo governo britânico pelo pagamento de propina a autoridades do governo de Condé. A investigação partiu de uma confissão da própria companhia.

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No ano passado, Steinmetz fez um acordo com Condé: abriu mão de brigar pela concessão de Simandou, em troca de o governo retirar a acusação de corrupção. O empresário manteve ainda o direito de exploração em Zogota, uma mina de minério de ferro de menor porte.

Esse acordo de paz deve finalmente destravar a extração de minério de ferro da maior mina ainda inexplorada do mundo – mas agora os britadores serão operados por chineses.

Enquanto Vale e Steinmetz seguem brigando, em novembro um consórcio liderado por investidores chineses em associação com um grupo de Cingapura conquistou as licenças de Simandou. A previsão é de iniciar as atividades ainda este ano.

Leia a íntegra do posicionamento da Vale:

A Vale confirma que Beny Steinmetz submeteu ontem um pedido de exibição de provas (discovery), no Distrito Sul de Nova Iorque, contra Vale S.A. e Vale Americas Inc., relacionado à defesa do Sr. Steinmetz no processo de apuração de fraude que a Vale e duas filiais ajuizaram no Tribunal Superior Inglês (English High Court) contra Steinmetz e outras entidades e indivíduos relacionados a ele em dezembro de 2019.

No processo de apuração de fraude, a Vale pede que Steinmetz e os outros réus sejam pessoalmente responsabilizados por terem induzido a Vale a entrar numa joint venture com a BSG Resources Limited ("BSGR"), companhia de propriedade de Steinmetz, relativa aos direitos minerários que a BSGR obteve na República da Guiné por meio de um esquema de suborno, fraude e corrupção.

Para embasar seu pedido, Steinmetz alega que a Vale entrou na joint venture com a sua empresa apesar de saber que a BSGR era corrupta.  Steinmetz utilizou esse argumento anteriormente, e a Vale o refutou de maneira decisiva no processo arbitral.  O argumento foi rejeitado explicitamente e com unanimidade pelo tribunal arbitral formado por três árbitros que decidiu que a Vale tem direito a 2 bilhões de dólares em indenização como resultado da fraude cometida pela BSGR.  O tribunal declarou na sentença arbitral que:

“O Tribunal está convencido de que a Vale empreendeu um exercício completo e minucioso de due diligence FCPA [legislação anticorrupção dos Estados Unidos].  A Vale contratou especialistas em FCPA do escritório Clifford Chance para realizar a due diligence.  A Vale requisitou um termo de declaração anticorrupção pessoal de Steinmetz e de Clark em nome da empresa BSGR.  A Vale fez questionamentos de acompanhamento da due diligence e investigou mais profundamente questões que - por vezes - tinham sido limitadas pela BSGR”.

O Tribunal concluiu que as “declarações falsas e enganosas da BSGR... foram consideradas pela Vale como ausência de sinais de alerta de suborno, corrupção e outras condutas improprias”.  O Tribunal também determinou que:

“... as provas corroboram fortemente a conclusão de que a Vale confiou nessas declarações feitas durante o processo de due diligence FCPA e de que não teria entrado na joint venture caso não estivesse satisfeita com o resultado desse processo”.

A BSGR contestou a decisão arbitral no Tribunal Superior Inglês, que rejeitou a impugnação caracterizando-a como "sem esperança". O Tribunal Superior Inglês inclusive aferiu os custos de indenização contra a BSGR por prosseguir com a impugnação. A District Court do Southern District de Nova Iorque também proferiu uma decisão judicial contra a BSGR, a favor da Vale, num montante superior a 2 bilhões de dólares, estando atualmente em curso procedimentos de execução tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra.

Dado o papel pessoal de Steinmetz na fraude da BSGR e seu recebimento de recursos usurpados da Vale, o Tribunal Superior Inglês emitiu em dezembro do ano anterior uma Decisão de Congelamento Mundial de Ativos (Worldwide Freezing Order) no valor de 1,85 bilhões de dólares contra Steinmetz, (e todos os outros réus) no processo de apuração de fraude pendente contra Steinmetz, pessoas associadas e entidades empresariais controladas por ele.  Nem Steinmetz nem qualquer outro réu contestaram essa ordem de congelamento, que continua em vigor até hoje.

Steinmetz busca eximir-se de sua responsabilidade pessoal pelos prejuízos causados à Vale, alegando que a Vale “sabia” que ele era corrupto.  A Vale está confiante de que os esforços empreendidos por Steinmetz continuarão a ser rejeitados por qualquer corte ou tribunal, tendo em conta o registro completo dos extensos esforços de diligência da Vale e os artifícios extraordinários utilizados por Steinmetz para ocultar da Vale a sua fraude.

Esse pedido de exibição de provas do Sr. Steinmetz é mais um artifício para ele tentar fugir de sua responsabilidade perante a Vale. O momento de seu ajuizamento não é por acaso, pois a Vale obteve recentemente uma decisão contra Steinmetz no valor de 2 bilhões de dólares em múltiplas jurisdições e tem rastreado de maneira diligente os proventos da fraude da BSGR e o património de Steinmetz. Atualmente, a Vale está buscando de maneira ativa a exibição de provas (discovery) de pessoas e entidades suspeitas de serem ou terem conhecimento sobre parceiros comerciais de Steinmetz e destinatários dos recursos que a Vale perdeu com a fraude.“

* Matéria atualizada no dia 22.05, às 18h30, incluindo o posicionamento da Vale.